Miopia
- Rafaela Chor
- há 5 dias
- 3 min de leitura
Meu peito bateu, como nunca bateu antes. Foi uma badalada sincronizada com meus passos que escutavam a sua canção favorita, a mesma que costumávamos ouvir quando abríamos uma garrafa de vinho barato.
Em poucos segundos de conversa, eu costumava enxergar o universo nos teus olhos castanhos que marejavam os meus com o encontro sinestésico de energias. Eu, que sempre lidei com a miopia, te enxergava perfeitamente sem meus óculos.
Você se lembra de quando corríamos pela passarela em cima da avenida e parávamos para tentar adivinhar a história por trás de cada carro a partir da sua velocidade? Acredito que quanto mais rápidos eram, mais sentíamos a adrenalina de pensar que estávamos em alta velocidade também.
Acontece que o que estava em aceleração eram nossos peitos, que pulsavam pedindo algo novo, alguma descoberta que fizesse com que nossos lábios se encontrassem. Eu sabia disso e acredito que você também. Mas, por algum motivo, o beijo era temido e aguardávamos até não conseguirmos segurar mais.
A espera durou algumas semanas, mas eu não sei como conseguimos realizar tal proeza. Lembro-me como se tivesse acabado de acontecer do momento em que sua mão envolveu minha cintura e meu pescoço se tornou descanso para o seu queixo.
Você estava sentada na cama do meu quarto enquanto ouvíamos o disco do Radiohead à meia-luz. A janela era tomada pelas gotas que escorriam, assim como o impulso escorria em nossas peles.
Você se aproximou para ver como ficava com meus óculos e tirou sarro por perceber que era um grau elevado. Eu, que nunca enxerguei tão bem na vida, me dispus a ficar mais perto, deixando apenas alguns centímetros de distância que, na verdade, pareciam quilômetros da sua boca.
Você colocou os óculos no topo da cabeça e me olhou como se nunca tivesse visto meus olhos. Era um olhar diferente, algo que pulsava mais adrenalina do que a corrida dos carros na avenida.
Eu permaneci imóvel enquanto sua boca se abria lentamente e se aproximava da minha, que, depois, também fez o mesmo movimento. Sua respiração quente se aproximou da minha e se tornou uma só. Um só fôlego.
Seus lábios finalmente vieram ao encontro dos meus e sua mão segurou minha cintura como quem segurava um pedaço de nuvem de tanta delicadeza. Sua língua se descansou na minha e, numa dança sincronizada, elas bailaram de forma incopiável. Eu nunca achei que fosse tocar o céu tão cedo, e sua boca me permitiu isso.
A partir desse dia, passei a te olhar de forma diferente. Minhas palavras de repente se tornaram mais adocicadas. O mel que escorria do meu corpo encontrava a sua boca enquanto eu degustava o açúcar que saía dos seus poros dilatados pelo calor que emanávamos.
Você soube muito bem como planejar o não planejado. Acreditar que nada disso foi pensado antes é simplesmente ingênuo e eu sempre fui uma pessoa que encostou os pés no chão. Até você chegar.
Quando eu era pequena, eu costumava enxergar as nuvens no alto e imaginar desenhos. Hoje, eu olho para o céu e vejo a memória que você deixou. Cada pedaço de nuvem me faz lembrar o seu toque.
Hoje faz 128 dias. Um pouco mais de 4 meses que a ideia de que preciso viver sem você me foi empurrada goela abaixo pelo universo. E preciso mesmo, não há outra alternativa.
Você, que nunca acreditou em céu nem nos Deuses, agora tem a chance de descobrir o que realmente acontece quando atravessamos a linha.
A cada dia que passa eu preciso menos dos meus óculos e eu garanto que eles ficam melhores em você, para que assim, você possa me enxergar dançando Radiohead no quarto trancado bebericando uma taça de vinho barato.
Adivinha só? Eu ainda te enxergo, meu bem. Nitidamente.

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